Mais de um ano após o início das ações de socorro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aos habitantes da terra indígena Yanomami, recursos milionários estão sendo destinados ao combate à desnutrição, mas sem licitação. No dia 13 de março, R$ 185 milhões foram destinados pelo Ministério dos Povos Indígenas para uma empresa de táxi aéreo para a entrega de cestas básicas nas aldeias.
O cenário que o governo Lula apontou como sendo de uma crise de desnutrição e utilizou para culpou o ex-presidente Jair Bolsonaro já ocorre ao menos desde os anos 2000, como mostrou levantamento da Gazeta do Povo. Além disso, mesmo que tivesse sido identificada só no início de 2023, como alegou o governo petista, houve mais de um ano para que licitações fossem realizadas, mas o caso ainda é tratado como emergencial. Por enquanto, quem está levando os alimentos para os indígenas são as Forças Armadas.
A dispensa de licitação foi justificada pelo ministério como uma “necessidade” diante da situação dos yanomamis. Em resposta aos questionamentos da Gazeta do Povo, a pasta apontou que “a contratação [da empresa de táxi aéreo] emergiu como a via mais expedita e tangível para salvaguardar direitos”.
O valor destinado para a empresa de táxi aéreo, que fará a distribuição de cestas básicas para os indígenas, corresponde a 40,6% dos R$ 455 milhões enviados ao Ministério dos Povos Indígenas por meio da Medida Provisória (MP) 1.209/2024, publicada no dia 12 de março. Ou seja, o valor foi reservado (empenhado) para a empresa no dia seguinte à publicação da MP.
De acordo com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, os R$ 185 milhões permitirão que nove mil cestas básicas sejam entregues aos yanomamis por meio da empresa contratada. Sendo assim, a logística de entrega de cada cesta básica transportada pela empresa custará pouco mais de R$ 20 mil.
A distribuição de cestas básicas tem sido um dos pilares da atuação do governo frente à crise humanitária identificada entre os yanomamis que vivem em Roraima e no Amazonas. Desde o início das ações do governo Lula, o Ministério da Defesa esteve à frente dessa logística. No entanto, em janeiro, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, adiantou que esse trabalho seguiria somente até março. A partir de abril, essa operação será viabilizada por um novo contrato.
“Ainda temos alimentos estocados que as Forças Armadas distribuirão. Esse apoio logístico será a partir de um novo contrato”, adiantou o ministro em janeiro.
Ou seja, a ideia de tirar as Forças Armadas da operação de entrega das cestas básicas partiu do Executivo e não dos militares. Mas ainda não está claro se empresas civis vão conseguir cumprir a tarefa.
Há uma série de dificuldades: aeronaves militares podem pousar em qualquer área onde haja condições técnicas. Já as aeronaves civis relutam em pousar em pistas não oficiais (não homologadas) por questões de cobertura securitária.
A pista de pouso da principal base da região, Surucucu, foi construída em desnível, o que torna muito arriscado o pouso de aviões cargueiros. Por causa disso, as Forças Armadas estão hoje lançando as cestas de paraquedas sobre a base. Elas são então recolhidas e levadas de helicóptero em porções menores para as aldeias.
Além disso, para manter o ritmo atual de entrega de cestas, a empresa privada precisará ter diversas aeronaves, pois quando uma vai para manutenção, tem que ser substituída imediatamente por outra.
O governo ainda não divulgou como pretende superar esse tipo de dificuldade. Além disso, está prevendo entregar 9 mil cestas em um período de tempo não revelado, enquanto as Forças Armadas entregaram 15 mil entre janeiro e março.
O Ministério dos Povos Indígenas informou em nota que o contrato de entrega das cestas básicas envolve a logística aérea entre Boa Vista (RR) e dois pontos designados como pontos de estocagem (não especificados) no interior da Terra Indígena Yanomami, ambos localizados em Roraima. De lá, os mantimentos seguem de avião ou helicóptero para seu destino final nas aldeias. O contrato envolve também o transporte de combustível para os dois postos de estocagem, de onde partirão as aeronaves menores para a entrega final.
Governo alega “situação emergencial” para dispensa de licitação A crise indígena foi uma das primeiras apontadas pelo governo Lula após a posse, em janeiro de 2023, e acabou sendo usada para acusar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de má gestão. Ainda durante o mandato de Bolsonaro, integrantes de partidos de esquerda e ONGs ambientalistas diziam que o então presidente estaria cometendo um genocídio contra o povo Yanomami.
Diante de dados que indicavam mortes de indígenas yanomamis por desnutrição, malária e outras doenças, o governo Lula criou uma força-tarefa para atuar também contra o garimpo ilegal e o desmatamento dentro da terra indígena Yanomami. Somente em 2023, o governo afirma ter investido cerca de R$ 1 bilhão em ações para o enfrentamento da crise indígena.
Ainda assim, no primeiro ano do governo Lula foram registradas 363 mortes de yanomamis, 5,8% a mais do que o registrado em 2022, último ano do governo Bolsonaro, quando 343 indígenas yanomamis morreram.
Diante desses dados, o governo anunciou, em janeiro de 2024, mais R$ 1,2 bilhão para o enfrentamento da crise. Na ocasião, Lula comparou o combate ao garimpo ilegal em terras indígenas a uma “guerra”. O recurso foi concretizado, em março, pela Medida Provisória 1.209.
Além do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, outras sete pastas poderão alocar recursos para ações no território indígena Yanomami: Ministérios da Justiça e Segurança Pública; Meio Ambiente e Mudança do Clima; Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; Defesa; Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Pesca e Aquicultura; e Direitos Humanos e da Cidadania.
Apesar dos investimentos e da atenção dispensada pelo governo, um ano após as primeiras ações emergenciais, o Ministério dos Povos Indígenas segue alegando que a situação se mantém para dispensar a licitação, em especial, no caso da contratação da empresa de táxi aéreo. Nesse processo, a pasta utilizou um dispositivo da Lei 14.133/2021 que prevê a dispensa de licitação em casos de emergência ou de calamidade pública.
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas informou que a dispensa de licitação foi conduzida em parceria com o Ministério da Gestão e Inovação e que tratou da contratação de uma empresa especializada nos serviços de locação de aeronaves de asa fixa e de asa rotativa. Não há, no entanto, mais especificações sobre a quantidade ou os modelos das aeronaves.
A justificativa, no entanto, contradiz o próprio governo. Em coletiva de imprensa após a reunião realizada em janeiro, o ministro Rui Costa sinalizou que o governo deixaria de lado as ações emergenciais.
“Vamos migrar de um conjunto de ações emergenciais [feitas em 2023] para ações estruturais em 2024. Isso inclusive na área de controle de território e segurança pública”, afirmou o ministro na ocasião.
Medida provisória amplia em mais de 50% o orçamento do Ministério dos Povos Indígenas Com a edição da Medida Provisória (MP) 1.209/2024, o orçamento do Ministério dos Povos Indígenas para 2024 passou de R$ 849,7 milhões para R$ 1,305 bilhão. Isso significa um aumento de 53% nos recursos para a pasta. A destinação dos recursos extraordinários, no entanto, não tem especificações detalhadas.
O Ministério dos Povos Indígenas não especificou o que será feito, quando questionado pela reportagem da Gazeta do Povo. A assessoria de imprensa da Casa Civil indicou apenas o acesso ao Painel do Orçamento Federal para “informações detalhadas sobre a destinação dos recursos e a execução”.
No painel, é possível verificar apenas que o Ministério dos Povos Indígenas terá recursos para ações de gestão de políticas para povos indígenas, para regularização fundiária, para proteção e gestão dos territórios indígenas e para direitos pluriétnicos-culturais e sociais dos povos indígenas.
Os gastos com o táxi aéreo para distribuição de cestas básicas, no valor de R$ 185 milhões, por exemplo, estão relacionados à gestão de políticas para povos indígenas. Para essa ação, a medida provisória previu a destinação de R$ 210 milhões no total. Sendo assim, quase 90% dos recursos da MP para a gestão de políticas para povos indígenas já foram comprometidos.