Duas semanas após a devastadora tragédia que assola o Rio Grande do Sul, as águas das enchentes históricas ainda não baixaram, mas já refletiram as principais fraquezas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ampliando a pressão sobre sua administração.
A incapacidade de controlar as finanças públicas, as falhas na comunicação, a falta de articulação política, a ineficiência da equipe ministerial e a contínua aposta na polarização ideológica foram claramente expostas na calamidade gaúcha, forçando o Palácio do Planalto a enfrentar esses problemas e buscar soluções.
Em meio a hesitações, recuos e embates com opositores e críticos da atuação do setor público na tragédia gaúcha, o governo tem tentado controlar a narrativa nos últimos dias, destacando esforços para ajudar o Rio Grande do Sul.
Em acordos com o governador Eduardo Leite (PSDB) e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foram anunciadas medidas, como um voucher de R$ 5,1 mil para 200 mil famílias atingidas, além da liberação antecipada de emendas parlamentares, saldos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e adiantamento de auxílios, como o Bolsa Família.
No Congresso, após a oficialização da calamidade, foram adotadas medidas como a suspensão da dívida com a União por três anos, sem cobrança de juros, resultando em um alívio financeiro de R$ 23 bilhões, incluindo juros.
Todas as medidas tomadas, tanto pela forma quanto pelo tempo gasto para serem anunciadas, ilustram as dificuldades que o governo acumula desde a posse de Lula. A maior delas, que pode interferir em todas as demais, é o desequilíbrio fiscal.
Desafios fiscais
Com a popularidade em queda e resistindo a adotar medidas de austeridade, o presidente da República permitiu que a dívida pública do país subisse mais de R$ 1 trilhão no seu atual mandato. A ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB), responsável pelo Orçamento, alertou para a necessidade de ajustes para garantir recursos em caixa nos próximos anos. Logo nos primeiros dias da crise no Rio Grande do Sul, ela pediu para esperar “a água abaixar” para se saber o real tamanho da conta de reconstrução do estado, o que provocou ruídos políticos.
Lula esperava uma queda consistente no preço dos alimentos em 2024, mas a tragédia climática no Rio Grande do Sul levou economistas a rever previsões para cima, gerando preocupações sobre a ampliação da impopularidade. Preocupado com a pressão inflacionária extra sobre o arroz, do qual o Rio Grande do Sul responde por 70% da produção brasileira, o presidente viabilizou a importação de um milhão de toneladas do produto.
Parte da safra perdeu-se sob as águas, mas 80% já estava colhida. Outros itens cuja contribuição do Rio Grande do Sul na oferta nacional é relevante também estão sendo monitorados.
Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que apoiou Lula no segundo turno em 2022, agora demonstra decepção. Em recente artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, ele lamentou que predomine no governo o pensamento econômico do PT, com excesso de obrigações impostas ao setor público, sem claras definições de prioridades. “Ao dispersar demais suas atividades, o Estado fica suscetível a ceder a interesses isolados e a persistir em promessas que não pode cumprir”, anotou.
Comunicação falha
Outro problema do governo evidenciado pelas chuvas no Rio Grande do Sul são os erros na comunicação com a sociedade, algo que se tornou uma queixa frequente do próprio Lula e favoreceu a saída honrosa do seu ministro da Secretaria de Comunicação (Secom), o deputado Paulo Pimenta (PT-RS), nomeado secretário extraordinário para a reconstrução do estado. Orientado por marqueteiros, o chefe do Executivo tirou do ar a campanha “Fé no Brasil”, com mensagens de otimismo e elogiosas à sua gestão, para priorizar mensagens de apoio ao povo gaúcho.
Mas nesses dias, ele próprio cometeu deslizes verbais em suas manifestações e deu carta branca para o governo combater com investigações da Polícia Federal críticas sobre sua atuação tidas como campanhas de desinformação.
Desarticulação política no Congresso
Durante as tratativas com o Congresso para aprovar projetos de socorro ao Rio Grande do Sul, Lula precisou abrir linha direta de negociação com os presidentes das duas Casas legislativas, mas também foi favorecido pelo espírito de solidariedade e cooperação que envolveu o país e os parlamentares. Isso não impediu que deputados e senadores buscassem pegar carona nas mudanças na lei orçamentária e na moratória da dívida gaúcha em favor de seus redutos pelo país. Nem diminuiu a cobrança para que Lula cumpra os acordos que fez com líderes partidários, como os que garantiram a volta da cobrança do seguro para acidentes de trânsito (Dpvat).
A avaliação de analistas é que os articuladores do Planalto continuam limitados, sem garantias de evitar derrotas e oportunismos do Legislativo.
Além disso, a posse de Pimenta como representante do Planalto no estado gerou mal-estar por sugerir apoio à sua candidatura ao governo estadual. Em entrevista ao jornal Correio da Bahia, o vice-presidente do União Brasil, ACM Neto, afirmou que Lula continua “preso no passado”. “Também cheiram a mofo as ações de governo, suas práticas políticas e seus projetos para o país”, disse o ex-prefeito de Salvador.
Para ele, o chefe do Executivo não soube fazer uma construção política mais ampla, preferindo reeditar a lógica do passado do “toma lá, dá cá”. O União Brasil tem três ministérios na Esplanada e há indicativos de que a sigla possa deixar a base de sustentação parlamentar da gestão petista.
Ineficiência ministerial exposta
As dificuldades da equipe ministerial em cumprir promessas e expectativas já fomentaram tensões na Esplanada, como se evidenciou nas cobranças do presidente em reuniões cada vez mais frequentes. Agora com seu 39º ministro, dedicado especialmente à tragédia gaúcha, Lula iguala o número de pastas ao do período Dilma Rousseff (PT) e expõe a equipe a mais críticas, em meio ao desconforto da queda de popularidade.
O diretor de relações governamentais da consultoria BCW Brasil, Eduardo Galvão, acredita que o ocorrido no Rio Grande do Sul desafiará a capacidade do time ministerial em fazer entregas. Por outro lado, a tragédia pode interferir no jogo da governabilidade e até apoiar a estratégia de Lula para se reeleger em 2026. “A situação das enchentes no estado, embora trágica, representa uma oportunidade para o presidente reforçar sua liderança e recuperar sua popularidade. O sul, conhecido por inclinações políticas conservadoras, pode ser decisivo para a consolidação do apoio nacional ao presidente, caso o governo consiga agir de maneira eficaz”, diz.
Segundo o especialista, para capitalizar essa oportunidade, Lula precisa demonstrar empatia, responsividade e eficácia na gestão da crise. “Ele tem de reverter as percepções de uma Presidência com aprovação popular em declínio, especialmente se as ações do governo puderem ser claramente comunicadas e percebidas como efetivas pelo público”, pondera.
A abordagem do governo, focando na reconstrução de residências modestas, escolas e unidades de saúde, alivia o sofrimento imediato e estabelece bases para uma recuperação de longo prazo. “Isso pode ser visto como sinal de cuidado tanto com a emergência atual quanto com o futuro da população afetada”, diz.
Polarização ideológica acentuada
Uma calamidade de grande proporção como a que sofre o Rio Grande do Sul, afetando mais de dois milhões de brasileiros, traz consigo uma natural demanda por união nacional, superando todas as diferenças regionais e políticas, em nome da solidariedade. Esta seria também uma oportunidade para Lula exercer na prática o slogan de “união e reconstrução” de seu governo. Mas desde o começo da crise, seus gestos só serviram para aprofundar o discurso de divisão da sociedade e enfrentamento aos grupos conservadores e de direita. Até mesmo a questão racial foi explorada por ele em sua abordagem sobre a tragédia no Rio Grande do Sul, como se a tragédia só tivesse atingido negros pobres. A tragédia atingiu todos, independente de raça ou classe social. Empresas de grandes portes a pequenos comércios, casas da zona rural, da periferia a mansões. Não há justificativa para querer polemizar um lado. Todos foram afetados e todos precisam de socorro.
Para o professor de Ciência Política da UDF André Felipe Rosa, o governo enfrenta no Rio Grande do Sul seu maior desafio: mobilizar recursos bilionários sem prejudicar a economia nacional. Mas o cientista político teme que a tendência seja de gastos exponenciais, acentuando o descontrole financeiro. “Tempos de pandemia e desastres naturais exercem pressão considerável sobre investimentos e testam a capacidade de gestão pública. A calamidade sanitária de 2020, revelou a importância do país lidar com inesperadas e pesadíssimas despesas, mas também de contingenciar verbas. Lula, contudo, segue um rumo perigoso”, diz.
Vale lembrar que o Governo Bolsonaro cuidou das despesas durante todo o seu governo, em especial na calamidade sanitária com maestria. Ajudou a todos, estabilizou as contas e deixou o país no azul com o caixa cheio. Bolsonaro entregou o país arrumado e com um superávit de 54 bilhões de reais. Lula em 2023, sem nenhuma emergência, gastou tudo e fechou o ano com um déficit de 177 bilhões de reais.
A situação é agravada pela polarização ideológica presente em cada discurso público do presidente, que aprofunda a divisão na sociedade brasileira. “A falta de coerência na comunicação do Executivo gera confusão e desalinhamento, especialmente entre os ministros, o que atrapalha a já complicada relação com o Congresso e ainda perturba os mercados”, sublinha.
Logo no começo da crise, Lula comparou sua performance diante da catástrofe atual à de Jair Bolsonaro (PL) nas enchentes que assolaram a Bahia no fim de 2021, sendo rebatido por aliados do ex-presidente. As chuvas na Bahia começaram no dia 7 de dezembro, Bolsonaro foi visitar o estado no dia 10 e mesmo não tendo sido bem recebido, providenciou o que era preciso. No fim do ano, em Santa Catarina, durante seu recesso entre o Natal e o Ano Novo, foi criticado porque estava andando de jet-ski e na Bahia continua chovendo. Neste mesmo perdido Bolsonaro tinha liberado 700 milhões de ajuda para o governo da Bahia.
Lula por sua vez, nas enchentes do RS, em setembro de 2023, foi para Índia e quando regressou mandou a esposa Janja no seu lugar com o vice.
Janja prometeu cestas básicas, que não foram enviadas. O vice presidente disse que Lula daria 500 milhões para o RS, porém o governo gaúcho diz que só recebeu pouco mais de 300 milhões.
Fragilidades surpreendem até apoiadores
O conselheiro de empresas e palestrante Ismar Becker acredita que os 16 meses do governo surpreenderam até seus apoiadores mais fervorosos. “Desde declarações desastrosas no Brasil e no exterior até constantes brigas entre ministros, passando por reuniões de emergência transmitidas ao vivo para cobrar resultados e repreender a equipe e uma campanha eleitoral antecipada em evento esvaziado do Dia do Trabalhador financiado pela Petrobras, foram muitos episódios nos quais Lula evidenciou suas fragilidades”, observa.
Ele acrescenta que o presidente parece não querer aproveitar a crise gaúcha, reveladora de suas maiores fraquezas, para corrigir os rumos da administração federal e converter problemas em oportunidades.
Becker estranha ainda a persistência do discurso ideológico de Lula centrado no “nós contra eles”, mesmo diante da tragédia no Rio Grande do Sul, sem demonstrar qualquer constrangimento. Essa postura já lhe causou prejuízos, que deverão agora se agravar. “Um político não pode se permitir pensar de maneira binária, vendo como amigo aquele que concorda em tudo e como inimigo aquele que discorda de algo”, detalha. Essa característica do governo, acredita ele, contribui para dificuldades no projeto de reeleição de Lula.