A mudança iminente no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o foro especial por prerrogativa de função, conhecido como “foro privilegiado”, pode ampliar a jurisdição do STF sobre crimes cometidos por agentes políticos, especialmente parlamentares, durante o exercício de seus cargos. A iniciativa do Tribunal e o momento de sua adoção refletem a desconfiança que permeia as relações entre o Supremo e o Congresso, uma desconfiança que também se estende pela sociedade brasileira em diversos aspectos nos últimos tempos.
No atual julgamento, o ministro Gilmar Mendes argumenta que os agentes políticos com foro no STF devem ser julgados naquela instância mesmo após deixarem seus cargos, desde que o inquérito ou a ação penal correspondente tenham sido iniciados após o término do mandato. A adesão de quatro ministros do Tribunal ao voto de Mendes indica um possível respaldo a essa nova abordagem.
Essa mudança de entendimento contrasta com a posição adotada pelo STF apenas seis anos atrás, quando o Tribunal determinou que apenas crimes cometidos por autoridades durante seus mandatos e relacionados ao exercício de seus cargos poderiam ser julgados pela Corte. Naquela época, ao fim do mandato da autoridade envolvida, seu processo era remetido à instância competente. Agora, segundo a posição proposta por Mendes, o processo permaneceria no STF.
Em seu voto, o ministro apresenta argumentos legais e factuais para justificar essa mudança. Porém, por trás dessa iminente decisão do Tribunal, paira uma disputa entre o STF e parlamentares descontentes, seja com decisões específicas da Corte, seja com o crescente protagonismo desta nos últimos anos. Essa disputa levou ao surgimento de propostas como a PEC 8/21, que limita decisões individuais dos tribunais contra atos legislativos, e a PEC 50/23, que busca dar ao Congresso o poder de anular decisões do Tribunal, violando a separação dos Poderes. A posição atual do STF pode ser vista como uma resposta a essas iniciativas, conferindo à Corte o julgamento de parlamentares mesmo após o término de seus mandatos. Assim, a desconfiança entre o STF e o Congresso fica evidente.
Essa desconfiança também parece guiar a conduta do Tribunal nos inquéritos das fake news e das “milícias digitais”. Através desses inquéritos, o STF se posiciona como o defensor da democracia, concentrando o julgamento de diversas condutas e agentes, com ou sem mandato. Isso reflete a desconfiança da Corte em relação às instâncias judiciais ordinárias.
Essa desconfiança não está limitada às relações entre instituições, mas também se estende à visão da população sobre suas elites. Após eventos recentes, como o 8 de Janeiro, até mesmo as elites demonstram desconfiança, se não temor, em relação à população.
Essa desconfiança permeia várias esferas da sociedade. Durante a pandemia de covid-19, por exemplo, uma parcela significativa da população demonstrou desconfiança em relação à eficácia das vacinas, às informações divulgadas pela imprensa e às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse fenômeno também foi observado em relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 2022, que apontou o Brasil como o país com menos confiança na América Latina e no Caribe.
A falta de confiança leva à falta de colaboração e ao aumento da intolerância. Nas redes sociais, a disseminação de desinformação e ódio contribui para alimentar essa desconfiança, inclusive por parte de nossos representantes políticos. Não há uma solução fácil para elevar os níveis de confiança na sociedade, mas é importante que a política não contribua para reduzi-los ainda mais.