Dois ex-integrantes do Ministério da Fazenda, que lideraram a regulação das apostas esportivas no Brasil, agora coordenam a área de “betting” de um escritório de advocacia. A empresa conta com 20 clubes de futebol e uma multinacional de coleta e análise de dados para casas de apostas entre seus clientes. O escritório desempenhou um papel importante no lobby que resultou na legalização das apostas esportivas no Brasil, tendo sido recebido pelos ex-secretários pelo menos cinco vezes para discutir a nova legislação.
Procurados, ambos afirmaram ter recebido aprovação da Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República para trabalhar como advogados após saírem do Ministério da Fazenda. No entanto, não forneceram detalhes à Comissão sobre qual escritório e área assumiriam. O Ministério da Fazenda esclareceu que o parecer para liberá-los é da CEP, que informou que pode revisar a imposição de quarentena caso surjam novos elementos.
Simone Vicentini, ex-secretária-adjunta de Prêmios e Apostas Esportivas, foi anunciada no dia 17 de maio, dois meses após deixar o Ministério da Fazenda, como a nova coordenadora da recém-criada área de betting e esportes do escritório CSMV Advogados, sediado em São Paulo. Ela trabalhará ao lado do advogado José Francisco Manssur, anunciado como novo sócio em 5 de junho, pouco mais de três meses após sair do ministério, onde atuava como assessor especial da Secretaria Executiva, responsável pela regulação do tema na gestão de Fernando Haddad.
Manssur, que liderou todo o processo de formalização e taxação das apostas no país, era o nome natural para assumir a nova Secretaria de Prêmios e Apostas, criada no ano passado. No entanto, disputas na operacionalização da nova área e interesses pelo cargo resultaram em sua exoneração, a pedido, em janeiro. O advogado Régis Dudena foi anunciado como seu substituto em abril.
Vicentini e Manssur contribuíram na elaboração, tramitação e aprovação da Lei 14.790/2023, que iniciou a regulamentação das apostas de quota fixa no Brasil, e na publicação da portaria 827/2024, em maio deste ano, autorizando a operação das casas de apostas no país.
A lei nº 12.813, de 2013, caracteriza como conflito de interesse quando ex-servidores de alto escalão trabalham, nos seis meses após a exoneração, em empresas que estabeleceram “relacionamento relevante em razão do exercício do cargo ou emprego”. Representantes do CSMV Advogados foram recebidos ao menos cinco vezes por Vicentini e Manssur durante seu período no Ministério da Fazenda.
A comissão liberou ambos de cumprir uma quarentena remunerada de seis meses – aplicada para evitar conflitos de interesse na chamada “porta giratória”, onde ocupantes de cargos de confiança deixam o governo para assumir postos em organizações privadas que atuam no mesmo setor.
Nenhum deles informou ao órgão que iria atuar na área de “bets” do escritório de advocacia antes da liberação. Apenas mencionaram que exerceriam a profissão de advogados, sem apresentar proposta formal – conforme decisão do órgão colegiado obtida pelo Estadão.
A CEP não viu problemas na atuação dos ex-secretários como advogados. O colegiado orientou, no entanto, que ambos não podem usar informações privilegiadas ou atuar em processos dos quais participaram no Ministério da Fazenda, exigindo ainda a comunicação imediata ao órgão caso recebam propostas para atividades privadas. O cumprimento dessas exigências não é fiscalizado pela comissão, que depende de denúncias para agir.
Vicentini explicou que, após ser liberada da quarentena, comunicou a CEP sobre a proposta do CSMV Advogados. “A gente tem de pagar as contas, trabalhar. Eles (Comissão de Ética Pública) já fizeram a análise de que posso trabalhar em escritório de advocacia, só não posso fazer uso de informação privilegiada”, alegou.
Manssur afirmou ter consultado informalmente uma assessora do órgão para saber se precisaria comunicar o colegiado. “Fui informado de que não havia essa necessidade. Mas, a princípio, já havia informado que sou advogado de direito desportivo – e a área de ‘bets’ é uma das áreas de direito desportivo. O pessoal espera que eu fique sem trabalhar para o resto da vida?”, questionou. Na decisão da Comissão de Ética, obtida pelo Estadão, não há menções à área de direito desportivo.
Nos anúncios de Vicentini e Manssur, o escritório CSMV Advogados destacou a atuação deles na regulação das apostas no Brasil.
“Entre as diversas normas de regulamentação das apostas online que (Vicentini) coordenou, destacam-se a habilitação de entidades certificadoras dos sistemas de apostas online, estúdios de jogos ao vivo e online, a disciplina das transações de pagamento e a instituição da Política Regulatória do setor”, escreveu o escritório sobre Vicentini.
“No período, também concluiu e enviou à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) as minutas das demais portarias que compõem a Fase 1 da Agenda Regulatória da SPA (Secretaria de Prêmios e Apostas Esportivas)”, acrescentou.
Vicentini foi nomeada em 1.º de março de 2023 como coordenadora-geral de Apostas da Subsecretaria de Regulação e Concorrência da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda. Entre 20 de fevereiro e 2 de maio, atuou como secretária-adjunta da SPA, com salário de R$ 14.849,50. Após deixar o governo, ela teria direito à quarentena remunerada, continuando a receber seu salário de servidora durante os seis meses de impedimento.
No cargo de secretária-adjunta, Vicentini recebeu o escritório CSMV Advogados uma vez, em 22 de março deste ano, para tratar da regulamentação das apostas esportivas, conforme sua agenda pública. A banca representou a Sportradar, empresa suíça que atua com dados esportivos para casas de apostas, federações esportivas e empresas de mídia. Como coordenadora, ela se reuniu com o escritório pelo menos outras duas vezes. O número de audiências pode ser maior, uma vez que a agenda de coordenadora não é pública.
Manssur teve quatro reuniões com representantes do CSMV Advogados, entre junho e dezembro de 2023. Os dados foram coletados da Agenda Transparente, ferramenta de monitoramento de reuniões públicas desenvolvida pela ONG Fiquem Sabendo. Além da Sportradar, a banca representou o Palmeiras, em outubro passado, numa reunião sobre apostas esportivas com dez clubes da primeira divisão do campeonato brasileiro de futebol. Manssur foi assessor especial da Secretaria-Executiva do Ministério da Fazenda entre 27 de janeiro de 2023 e 23 de fevereiro de 2024, com salário de R$ 14.849,50.
“Em seus mais de 25 anos de experiência, Manssur foi um dos autores do projeto de lei que criou a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) e participou do Grupo de Trabalho do Ministério do Esporte responsável pela redação do Estatuto do Torcedor. Mais recentemente, esteve à frente da elaboração das regras para o setor de apostas por quota fixa no Brasil, que culminaram com a sanção da Lei 14.790/23, que regulamentou as apostas esportivas e jogos online no Brasil”, escreveu o escritório em uma publicação no Instagram.
Em outra postagem, baseada em uma matéria publicada em uma revista jurídica, o escritório destacou que é esperado um crescimento do setor de apostas após a entrada em vigor da Lei 14.790, em dezembro do ano passado.
Em nota, o Ministério da Fazenda afirmou que a Comissão de Ética Pública da Presidência da República concluiu que não há conflito de interesses que impedisse a atuação profissional dos dois.
A Comissão de Ética Pública confirmou ter sido comunicada oficialmente apenas por Simone Vicentini. “Ela acrescentou que vai obedecer estritamente as condicionantes da nossa decisão”, explicou o presidente do órgão colegiado, Manoel Caetano Ferreira Filho. “Por parte do Manssur, não foi feito nada oficialmente”, completou. O advogado acrescentou que o colegiado poderá rediscutir a quarentena caso surjam novos elementos.