Ao reafirmar sua opinião de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é “corrupto e comunista”, o presidente da Argentina, Javier Milei, evidenciou o abismo político entre os governos argentino e brasileiro. Embora o conflito entre os dois presidentes não afete os negócios de empresas privadas nem prejudique a relação bilateral entre os países, pode ser um obstáculo para os planos de Lula de unir a América do Sul sob sua liderança política.
De acordo com analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a má relação entre Lula e Milei revela a dificuldade do petista em se tornar um líder regional. “Historicamente, todos os governos brasileiros têm dado muita atenção à questão da integração regional, e o Mercosul é um veículo para o exercício da hegemonia regional brasileira […] Argentina e Brasil são os motores sem os quais a iniciativa de integração regional não tem como prosperar nem se manter ativa”, avalia o professor Elton Gomes, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
A aspiração de Lula de se tornar um líder regional e porta-voz do Sul-Global (países em desenvolvimento) ficou evidente durante o primeiro ano deste mandato, quando priorizou sua agenda externa. Segundo o diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, a má articulação do governo não se reflete apenas na Argentina, mas também com outros líderes sul-americanos, tanto de esquerda quanto de direita, que divergem de Lula. “O caso mais evidente é o do Milei, mas você pode incluir o Uruguai também […] e até em relação à Colômbia e ao Chile, embora haja, teoricamente, uma maior proximidade ideológica. Mas, em casos concretos, são países que têm divergido de Lula”, pontua o diplomata.
O ex-ministro lembra que o presidente do Chile, Gabriel Boric, apesar de ser mais alinhado à esquerda, adota uma postura clara de condenação à Rússia na guerra da Ucrânia, diferentemente de Lula. Os dois líderes também não estão em consenso sobre a Venezuela. “O Brasil ainda mantém uma posição ambígua sobre a Venezuela, como se Lula estivesse esperando para ver o que vai acontecer na eleição marcada para o dia 28 de julho”, analisa Rubens Ricupero.
Em maio do ano passado, Lula chegou a dizer que a ditadura na Venezuela, marcada pela perseguição de dissidentes, uso de violência política e manipulação eleitoral, seria apenas uma narrativa.
Para o diplomata Rubens Ricupero, Lula não conseguiu cumprir suas promessas na política externa e essa área do governo vive um “momento de eclipse, está apagada e sem grandes feitos”. “Parece-me que hoje há muito pouca ênfase [na gestão petista] na América do Sul, que tradicionalmente era nossa área principal de influência. Atribuo isso, em grande parte, ao fato de que o próprio governo brasileiro reconhece que não há condições preferenciais para uma boa articulação na região”, avalia Ricupero.
Diplomata de carreira e professor, Rubens Ricupero foi ministro do Meio Ambiente de Itamar Franco e secretário do Ministério da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Apelidado como “Apóstolo do Real” por Itamar, Ricupero teve participação relevante no Plano Real e ocupou altos postos diplomáticos, como as embaixadas dos Estados Unidos e da Itália.
Lula ainda está ressentido com Milei e espera um pedido de desculpas, mas o argentino não está disposto a ceder
A tensão entre os líderes argentino e brasileiro ressurgiu na semana passada, quando Lula afirmou em entrevista ao UOL que não conversou com Milei porque ele deve desculpas ao petista e ao Brasil “por falar muita bobagem”. “Eu só quero que ele peça desculpas. A Argentina é um país que eu gosto muito, é um país muito importante para o Brasil, e o Brasil é muito importante para a Argentina. Não é um presidente da República que vai criar uma rixa entre o Brasil e a Argentina”, disse Lula.
Questionado sobre a declaração de Lula, Milei reafirmou sua posição. “Qual o problema no que eu disse? Que ele é corrupto? Ele não foi preso por corrupção? Que eu disse que ele é comunista? Ele não é comunista? Desde quando você tem que se desculpar por dizer a verdade? Ou estamos tão cansados do politicamente correto que nada pode ser dito à esquerda, mesmo que seja verdade?”, disse Milei em entrevista ao canal argentino LN+.
Lula teve suas condenações por corrupção na Operação Lava Jato anuladas pelo Supremo em 2021 porque o processo contra ele correu no Paraná e não no Distrito Federal.
O ressentimento de Lula com o libertário argentino é antigo e deve-se às críticas que Milei fez ao brasileiro e às diferenças ideológicas. Durante sua campanha eleitoral, o argentino chamou Lula de “comunista raivoso” e fez “campanha” pró-Bolsonaro em suas redes sociais em 2022. Lula disse em discursos que Milei e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) eram “contra o sistema” e parte da “extrema direita raivosa e bruta”.
Milei vem ao Brasil e se encontra com Bolsonaro, mas descarta conversa com Lula
Havia expectativa de que Lula e Milei se encontrariam nesta semana, durante a Cúpula do Mercosul, marcada para os dias 8 e 9 de julho, no Paraguai. No encontro, Argentina e Brasil se reunirão com Uruguai e Paraguai — além de Bolívia e Venezuela, como membros convidados — para discutir o futuro do acordo de livre comércio que o bloco negocia com a União Europeia. Lula já confirmou sua presença no encontro, mas Milei recalculou a rota.
Enquanto a cúpula do Mercosul ocorre em Assunção, capital paraguaia, Javier Milei faz sua primeira visita ao Brasil para participar da Conservative Political Action Conference (Conferência de Ação Política Conservadora), conhecida como CPAC. O CPAC foi criado em 1973 pelos grupos American Conservative Union (ACU) e Young Americans for Freedom (YAF), e é considerado o maior evento conservador dos Estados Unidos.
No evento, Milei deve se reunir com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que também já confirmou sua presença. Esta é a primeira visita oficial de Milei ao Brasil, e ele não tem encontros previstos com o presidente Lula. Desde que o libertário assumiu a Casa Rosada, Lula e Milei não se encontraram — como de praxe acontece com os presidentes de ambos os países.
Brasil e Argentina possuem as principais economias da América do Sul e têm relações comerciais estreitas, mas Lula e Milei têm evitado um encontro. Os dois tiveram apenas uma agenda em comum até o momento, durante a Reunião de Líderes do G7 (bloco formado por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido, as sete maiores economias democráticas). No encontro, apenas se cumprimentaram, conforme informou um porta-voz da Casa Rosada.
Durante a passagem pelo G7, Lula manteve encontros bilaterais com diversos líderes internacionais, mas Javier Milei não foi um deles. Na tradicional foto de família, feita após o dia de reuniões na cúpula, a imagem de Lula e Milei em lados opostos ilustrou a polaridade entre os dois líderes.