Movimentos recentes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do Congresso Nacional sinalizam uma repetição de artimanhas já vistas durante a vigência do antigo teto de gastos, porém, desta vez, de maneira mais ágil, ameaçando a credibilidade da nova norma para o controle das finanças públicas.
O teto de gastos, estabelecido em 2016, só foi modificado três anos depois, em 2019, enquanto o novo arcabouço já sofreu alterações antes mesmo de completar um ano.
A mais recente mudança foi a aprovação, pela Câmara, de uma proposta para antecipar R$ 15,7 bilhões em despesas extras no Orçamento de 2024, concedendo ao presidente Lula o poder de editar um decreto e determinar livremente a alocação do dinheiro. Conforme reportado pelo Estadão, há um acordo para distribuir os recursos entre as indicações do governo e dos parlamentares.
Entretanto, mesmo antes dessa antecipação, que burla o arcabouço, “brechas” nos limites de gastos já acumulavam R$ 28 bilhões desde a implementação da nova âncora fiscal, em agosto do ano anterior.
Isso inclui R$ 17,7 bilhões destinados a Estados e municípios para compensar perdas de arrecadação (um montante que deve alcançar R$ 27 bilhões até 2025); R$ 6 bilhões do programa Pé-de-Meia (uma poupança para estudantes do ensino médio); e R$ 4,3 bilhões do Ministério da Saúde negociados no final do ano passado em troca da aprovação da agenda econômica.
A maior parte dessas despesas foi incluída ainda no Orçamento de 2023, antes da vigência do novo limite de gastos estabelecido pelo arcabouço, mas foram aprovadas após a sanção da lei fiscal e excederam o teto mantido naquele ano, conforme determinado pelo próprio arcabouço. Isso ocorreu porque a nova regra estabeleceu que o limite do antigo teto permaneceria válido até o final de 2023, como uma espécie de período de transição.
No caso das transferências a Estados e municípios, por exemplo, elas só deveriam começar em 2024, mas houve uma antecipação para o pagamento de R$ 15 bilhões ainda em 2023, e o restante foi incluído no Orçamento deste ano – em ambos os casos, ultrapassando os limites de despesas.
Em relação aos fundos destinados à saúde, conforme relatado pelo Estadão, o dinheiro foi utilizado por cidades sem capacidade para oferecer atendimentos na área, resultando em um descontrole no orçamento do Ministério da Saúde.
“O arcabouço já está morto. Foi modificado tantas vezes”, afirma Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado Federal.
E o problema pode piorar. O projeto aprovado pela Câmara prevê uma antecipação de crédito extra de R$ 15,7 bilhões em 2024. Atualmente, o arcabouço estabelece que essa despesa só seria autorizada no final de maio e ainda dependeria da arrecadação do segundo bimestre. Se aprovada pelo Senado, a mudança antecipará a despesa imediatamente, considerando a arrecadação do primeiro bimestre, sem exigir um acompanhamento mais rigoroso das futuras receitas.
Além disso, há a possibilidade de que esse valor se transforme em um aumento permanente de gastos. Primeiramente, o valor será incorporado ao montante usado para calcular o limite total de despesas em 2025. Em segundo lugar, existe uma regra que prevê a redução do Orçamento em 2025 se o aumento da arrecadação for menor do que o esperado em 2024. No entanto, essa “punição” pode ser vetada da lei.
Outra especulação é que a necessidade de redução do montante em 2025, caso a arrecadação de 2024 seja menor do que o estimado, seja simplesmente ignorada, mesmo que sancionada. Essa manobra já aconteceu durante a vigência do teto de gastos.
Em 2021, o Congresso aprovou uma proposta do governo Jair Bolsonaro (PL) para aumentar as despesas em 2022, ano eleitoral. O teto considerava o comportamento da inflação para estabelecer o limite de gastos. Em 2022, a inflação veio menor do que o estimado, o que obrigava o governo a descontar a diferença no Orçamento de 2023, mas isso não foi cumprido.
Novas flexibilizações estão sendo cogitadas. Uma delas é a alteração das metas fiscais de 2025 e 2026 para acomodar o aumento de despesas sem o crescimento esperado na arrecadação. O arcabouço estabelece que as despesas podem crescer até 70% do aumento da receita, dentro de uma faixa entre 0,6% e 2,5% acima da inflação, e estabelece as seguintes metas: déficit zero em 2024, superávit de 0,5% do PIB em 2025 e de 1% em 2026.
Além disso, há incertezas em relação ao limite para o bloqueio de despesas. O Executivo busca a aprovação do Tribunal de Contas da União (TCU) para cortar menos gastos do que o previsto pelos técnicos do Congresso e pelos economistas do mercado financeiro.
“Quando se trata de contingenciamento (bloqueio preventivo de despesas para cumprir a meta), o governo, ao perceber que deveria contingenciar cerca de R$ 50 bilhões, seguindo as regras que ele mesmo estabeleceu, mudou de ideia e disse que iria bloquear no máximo R$ 26 bilhões, alegando que era para ficar dentro da faixa de despesas. Mas não é isso que está no projeto de lei do arcabouço”, afirma Barros, da Ryo Asset.
Em resumo, o roteiro do arcabouço fiscal está repetindo os mesmos dribles observados no antigo teto de gastos, porém, de forma mais precoce e intensa. Aprovado em 2016, por iniciativa do ex-presidente Michel Temer, o antigo teto só sofreu as primeiras modificações em 2019, três anos depois. Já o arcabouço passou por mudanças mais significativas em um período de tempo mais curto. Entre 2019 e 2022, foram oito emendas constitucionais alterando o teto de gastos, com diversas mudanças para burlar as regras.
O economista Marcos Mendes, um dos idealizadores do teto de gastos, destaca a diferença de contexto em relação aos períodos em que as regras foram estabelecidas. “Na época do teto, tínhamos uma crise econômica grave, que deixou a classe política muito preocupada, a ponto de aceitar a imposição do teto”, diz o pesquisador do Insper.
“O arcabouço surgiu de maneira diferente, em um governo que decidiu, desde o início, aumentar em 1,8% do PIB os gastos públicos com a PEC da Transição. Foi como se dissessem: ‘Vamos gastar e depois ajeitamos as coisas'”, diz Mendes, que prevê novas flexibilizações em breve.
Até o fechamento desta reportagem, Ministério da Fazenda e Tesouro Nacional não haviam se pronunciado. O Ministério do Planejamento e Orçamento optou por não comentar o assunto.