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domingo, 24 novembro, 2024
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Tumulto no Senado: Proposta de novo Código Civil abala fundamentos e direitos na era digital

Por Marina B.

Nas discussões acerca do novo Código Civil, apresentado pela comissão de juristas convocada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), um capítulo completo é dedicado ao Direito Digital. Entre as sugestões desta seção está a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, um ponto que tem sido alvo de críticas por parte de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e membros da esquerda nos últimos anos.

Publicamente questionado sobre as implicações do novo documento para os conceitos de família, casamento e pessoa, Pacheco tem respondido às acusações sugerindo que as polêmicas são resultado de “fake news”, e que as mudanças no Código Civil têm como principal motivação as demandas do mundo digital.

Recentemente, após críticas do senador Eduardo Girão (Novo-CE) sobre as ameaças potenciais que a proposta do novo Código Civil poderia trazer à defesa da vida, Pacheco afirmou: “A verdade é que o Código Civil precisa ser atualizado, inclusive para garantir avanços no Direito Digital, considerando a nova realidade das interações tecnológicas no mundo”.

Entretanto, o livro dedicado ao Direito Digital parece mais inclinado a intensificar as controvérsias do que a oferecer um consenso sobre a necessidade de mudança no Código Civil, como sugere Pacheco. Ao longo de suas trinta páginas, torna-se evidente o viés ideológico predominante na comissão convocada pelo senador.

Os juristas expressam claramente o desejo de abrir mais uma frente de debate em relação ao artigo 19 do Marco Civil, ao solicitar explicitamente sua revogação. Esta proposta demonstra a concordância dos membros da comissão com as ideias defendidas pela cúpula do Judiciário e pelos congressistas alinhados ao governo sobre a liberdade de expressão nas redes.

O artigo 19, em vigor atualmente, impede que as redes sociais sejam responsabilizadas pelo conteúdo postado por seus usuários, o que favorece a livre expressão na internet. Atualmente, as plataformas só são obrigadas a remover conteúdos abusivos se forem judicialmente acionadas para tal. No entanto, parlamentares de esquerda e o Judiciário brasileiro defendem que elas assumam um “dever de cuidado”, ou seja, que sejam proativas na remoção de conteúdos que a lei classificaria como abusivos, e sejam responsabilizadas caso não o façam. Isso inclui conceitos vagos como “desinformação” e “discurso de ódio”, levantando preocupações sobre a liberdade de expressão.

Inicialmente, esse era o principal foco do PL 2.630/2020, conhecido como “PL da Censura” ou “PL das Fake News”, até que a reação da oposição reduziu o ímpeto de censura do texto original. Este também é o foco do STF no tema 987, onde a Corte discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil.

Além da revogação do artigo 19, o relatório do anteprojeto propõe que “as plataformas digitais possam ser responsabilizadas” administrativamente e civilmente “por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando houver descumprimento sistemático dos deveres e das obrigações previstas neste Código”.

Outra proposta afirma que “as plataformas digitais devem demonstrar a adoção de medidas de diligência para mitigar e prevenir a circulação de conteúdo ilícito”. Além disso, afirma que “é dever de todos os provedores” responder “pelos danos que seus atos e atividades causarem a outras pessoas”.

A ênfase na obrigação das redes de exercer o “dever de cuidado” não é aleatória. Revogar o artigo 19 e transferir a responsabilidade para as redes sociais pode liberar as autoridades brasileiras da vigilância de certos tipos de conteúdo, que precisariam ser banidos pelas próprias plataformas. Isso pode desagradar principalmente às empresas do Big Tech, como Google, Meta e X.

No ano passado, em uma audiência pública promovida pelo STF sobre o tema 987 (relacionado ao artigo 19 do Marco Civil), Rodrigo Ruf Martins, gerente jurídico da Meta no Brasil, expressou preocupação de que estabelecer o chamado “dever de cuidado” poderia levar à exclusão de conteúdos cuja legalidade é mais subjetiva, o que seria um problema para a liberdade de expressão: diante do risco de punições, as redes seriam obrigadas a ser excessivamente cautelosas na censura, limitando expressões potencialmente legítimas.

Além disso, o relatório do anteprojeto contém dispositivos que permitem que os usuários solicitem a remoção de certos conteúdos publicados na internet e a desindexação de informações, ou seja, que elas não possam ser encontradas por mecanismos de busca.

Neste ponto, o relatório parece se inspirar na ideia do “direito ao esquecimento”, que ganhou destaque no meio jurídico após a aprovação de uma lei da União Europeia nesse sentido em 2014, mas que foi considerado incompatível com a Constituição pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em uma decisão de 2021.

Um dos artigos propostos estabelece que “a pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou informações relacionados a ela, que representem uma lesão aos seus direitos fundamentais ou de personalidade, diretamente no site onde foi publicado”.

O relatório condiciona a remoção do conteúdo ao cumprimento de certos requisitos, como “a presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação”, “a ausência de interesse público ou histórico relativo à pessoa ou aos fatos correlatos” e a “demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte, poderá gerar significativo potencial de dano ao indivíduo ou a seus representantes legítimos e nenhum benefício para quem quer que seja”.

Outro dispositivo estabelece que “a pessoa pode solicitar a aplicação do direito à desindexação, que consiste na remoção do link que direciona a busca para informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente”.

A proposta de introduzir o direito ao esquecimento na legislação brasileira preocupa juristas. A reescrita da história e a construção de narrativas sobre certos fatos poderiam ser facilitadas – por exemplo, versões sobre a pandemia da Covid-19 que questionem a eficácia das vacinas poderiam ser removidas e desindexadas sob o argumento de representarem “desinformação” e ameaçarem a saúde pública.

“Na Europa, especialmente na Alemanha, há uma grande preocupação com a preservação da memória, especialmente em relação ao nazismo. Houve uma grande resistência na Alemanha ao reconhecimento de um direito ao esquecimento, porque obviamente este é um tipo de fato que não deve ser esquecido. É preciso sempre lembrar, para que esses fatos não se repitam. Obviamente, existem limites para o nosso direito à liberdade de expressão – calúnia, injúria e difamação, que são crimes previstos em nossa legislação, são limites evidentes a essa liberdade, mas me preocupa o argumento de que determinada informação, apesar de ser verdadeira e ter sido obtida por meio legal, possa eventualmente ser apagada, e as pessoas não tenham mais acesso, especialmente a informações relacionadas à história de nosso povo, à história do mundo e a questões de justiça”, comenta o advogado Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco.

Um dos dispositivos impediria a publicação de dados “que tiverem sido extraídos de processos judiciais que correm em segredo de justiça”, o que poderia prejudicar a liberdade de imprensa e dificultar a denúncia de escândalos de corrupção e grandes crimes.

“Preocupa falar sobre o direito ao esquecimento. Existem pessoas que cometeram crimes terríveis, e eu não poderia mais debater, não poderia mais divulgar esse tipo de informação nas redes sociais. Os jornais não poderiam mais trazer informações sobre esses crimes de grande repercussão, sobre graves injustiças que aconteceram em nosso país. Temos um passado de escravidão. Imagine não poder falar sobre escravidão, não poder falar sobre tantos absurdos que já aconteceram aqui em nosso país”, afirma Venceslau.

O especialista lembra do caso de Alexandre Nardoni – um dos responsáveis pela morte de sua filha, Isabella Nardoni – que está prestes a ser solto. O livro elaborado pela comissão de juristas poderia abrir espaço, dependendo da interpretação da nova lei, para que a história de Alexandre fosse apagada da internet.

“Uma proposta como essa impede que a sociedade possa tomar conhecimento desse fato e debater, e talvez repensar essas questões. Claro que ele [Alexandre Nardoni] tem o direito, em determinado momento, de sair da prisão. No Brasil, não há prisão perpétua nem pena de morte. Mas o direito das pessoas de conhecer a verdade, de ter acesso à verdade, não deve ser limitado. Essa proposta da comissão é preocupante”, diz.

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